Raymundo Mello: Não era para tomar nota

Aracaju do século XX (década 1940-1950) era uma cidade pequena, alegre, servida por razoável tráfego de bondes elétricos que atendia à população estimada em 80.000 habitantes, distribuída em cerca de 8 bairros interligados por ruas bem colocadas como um tabuleiro de xadrez. Habitada por ricos e pobres como as demais cidades brasileiras da época, vivendo os anos de guerra (até 1945) e do pós-guerra que trouxe um alívio geral para todos, inclusive porque o país saía de um período ditatorial para a implantação do regime democrático. Os ventos da liberdade de pensar e agir davam aos jovens e aos mais idosos a esperança de um futuro melhor, alimentado pelos filmes de Hollywood e os noticiários radiofônicos. Enfim, vivia-se bem, na medida do possível.

A cidade tinha um sistema de abastecimento centrado no mercado público ao lado da estação ferroviária e, na zona oeste da cidade, a feira do Aribé, hoje bairro Siqueira Campos. Fora desses pontos principais, contava a população com grande número de quitandas, mercadores de rua com tabuleiros de frutas, verduras, mariscos, doces, pães, etc... e bodegas – centenas delas, pequenos armazéns de secos e molhados, quase uma em cada esquina.

 Essas bodegas atendiam aos consumidores com seu tradicional sistema de vendas à vista ou fiado, como se dizia, mediante anotação em uma caderneta cedida aos clientes de confiança. Encerrado o mês, somavam-se os valores referentes a cada produto adquirido e o comprador liquidava o débito, totalmente ou em parte, conforme acerto. Era a semente dos cartões de crédito, hoje tão comuns entre supermercados e seus clientes. As bodegas “quebravam o galho” dos compradores.

Contava ainda a cidade com dois grandes e bons armazéns, bem sortidos e com sistema de vendas também usando o crédito nas cadernetas – eram o Armazém Sul Americano, na rua Laranjeiras, e o Armazém Prudente, na rua João Pessoa (trecho hoje denominado José do Prado Franco). O primeiro já não existe há muito tempo e o segundo evoluiu em seus negócios e integra hoje a rede de Super Mercados Prudente.

Em paralelo aos armazéns citados, surgiu um estabelecimento de bom nível na esquina da rua Arauá com Estância que, pela sua qualidade e estoque muito bem selecionado, recebeu a denominação de empório – Empório Santo Antônio. Seus proprietários, Dona Conceição e Senhor Paulo, pessoas muito educadas, experientes, tratavam a clientela com atenção e respeito. Ele, alto funcionário de um instituto de aposentadoria e pensões (chegou a exercer as funções de Delegado do órgão em Sergipe) e ela, amadurecida em anos, trajava-se muito bem como baiana Mãe de Santo e, com esses trajes simples mas bem cuidados, atendia no balcão e no caixa.

 Não descuidava de suas obrigações religiosas e como boa representante do sincretismo religioso da Bahia, devota de Santo Antônio, todos os anos, no período de 01 a 13 de junho, celebrava com seu Paulo e a vizinhança, as trezenas do santo com direito a foguetório, orações e comidas típicas; no encerramento da trezena sofria a concorrência dos festejos com as celebrações feitas no mesmo horário, na residência do Coronel Stanley Silveira, à rua Estância, a cerca de 50 metros de distância do empório – é que o Coronel, apesar de homenagear o santo apenas no dia 13 de junho, trazia a banda de música da Polícia Militar para sua porta e aí, com essa concorrência, a trezena patrocinada por seu Paulo e dona Conceição perdia uma parte de participantes, especialmente crianças que se encantavam com a banda de música.

A verdade é que a área ficava enfeitada, alegre e um pouco mais voltada para a religião e o Responso de Santo Antônio inebriava as almas orantes: “Se milagres desejais, recorrei a santo Antônio, vereis fugir o demônio e as tentações infernais. Recupera-se o perdido, rompe-se a dura prisão e no auge do furacão cede o mar embravecido”. A promessa era magnífica e os “milagres” aconteciam para os que, de fato, acreditavam.

A clientela do Empório era prestigiada com mimos e prestigiava a casa com presença constante em seus balcões para adquirir produtos de boa qualidade. Em determinadas épocas do ano, não se sabe como, o Empório recebia mercadorias especiais como, por exemplo, na Páscoa e no Natal. Nesses períodos, as prateleiras eram ornamentadas com vinhos importados, bacalhau norueguês, queijos, chocolates suíços, peras, uvas, maçãs, amêndoas e avelãs, das mais variadas procedências, disputadas a peso de ouro por comerciantes, autoridades e madames bem vestidas descendo imponentes dos Doddges, Plymouts, De Sotos, Chevrolets e Pontiacs lustrosos, prontas para abastecerem suas despensas com os melhores produtos, em sua grande maioria importados. Era um verdadeiro desfile da “nobreza” local na frente do estabelecimento enquanto o exemplar empregado do Empório, senhor Aurelino, ajudava os motoristas a colocar os volumes nas malas dos belos veículos.

Em paralelo, a clientela contumaz, bem mais simples, permanecia fiel à casa, adquirindo à vista ou anotando em cadernetas, algumas um tanto ensebadas pelo excesso de manuseio em mãos de cozinheiras, empregadas domésticas da vizinhança. Mas, verdade se diga: ricos e ricas clientes eventuais, classe média e não tanto, da redondeza, eram tratados com a mesma dignidade e recebidos sempre com um sorriso, fosse ele, real ou simplesmente comercial.

Só um pequeno cliente, aliás, intermediário de compras entre sua mãe e o Empório, colocava em suspense o ambiente quando chegava, de calça curta, suspensório de pano, camisa de meia e calçando pé de anjo, dirigindo seu veículo imaginário, para fazer as compras que sua genitora solicitava. Não tinha mais que 10 anos de idade mas era de uma vivacidade inacreditável.

Chegava na porta do Empório, uma buzinada com a boca para chamar a atenção – “fon-fon” e uma acelerada extra – “vruum”, antes de desligar o seu veículo de sonho. E aí jogava o pedido: “Seu Paulo, minha mãe disse pro senhor mandar 150 gramas de manteiga, meio quilo de açúcar, um quilo de massa de milho. E está aqui o dinheiro da compra (ou a caderneta para tomar nota conforme o dia)”. Suas idas e vindas sucediam-se três a quatro vezes por semana. O esquema era sempre o mesmo, às vezes pela manhã às vezes pela tarde. Os produtos variavam de acordo com as necessidades de sua mãe. O mesmo acontecia com o pagamento – em determinados dias, o dinheiro amassado na mão, em outros, a tradicional caderneta para tomar nota.

Jorge era seu nome mas todos os tratavam por Jorginho. Sempre alegre, simpático e brincalhão, bulia com uns, sorria para outros, enfim, era um garoto feliz em seu mundo de ilusões. Irreverente, às vezes.

O perigo é quando a mãe dele mandava comprar Papel Higiênico – um pacote de papel higiênico. O danado, alto e bom som, estivesse quem estivesse na casa pedia a plenos pulmões – “Um pacote de papel pra limpar o c.”. E pagava ou mandava anotar. Assim, cada vez que ele chegava na porta do Empório, como não se sabia se era dia de comprar papel higiênico, ficava sempre no ar aquela expectativa. E não adiantava sinalizar pois era um prazer para ele discriminar os pedidos da mãe que iam de produtos alimentícios a material de limpeza, material escolar – lápis, cadernos, etc e o tradicional Papel Higiênico, em pacote, folhas presas por um fio de arame para facilitar pendurar no prego do banheiro.

E de tanto passar vexame nesse sentido, seu Paulo, um dia, após o seu pedido de “papel pra limpar o c.”, chamou-o a um canto e fez um pacto com ele: “Jorginho, toda vez que você vier comprar esse produto e pedir corretamente Papel Higiênico, vou colocar o frasco de balas na sua frente e você pega, de graça, quantas balas couber em sua mão. Presente da casa. Combinado? Tudo certo?” – “Combinado, seu Paulo”.

Daí em diante, tranquilidade geral. Jorginho ia fazer compras e disciplinadamente pedia Papel Higiênico e grudava o olho no frasco de balas. Virou rotina – Papel Higiênico, mão cheia de balas. Tá aqui o dinheiro ou anote na caderneta. Até que, no final do ano, tarde de véspera de Natal, casa cheia de clientes costumeiros e senhoras e senhores abastados adquirindo as guloseimas para a Ceia da noite, Jorginho chega na porta da casa comercial, dá uma buzinada mais forte – “fon-fon” pra chamar a atenção, duas aceleradas no seu veículo imaginário –“vrum-vruum” e larga o pedido: “Seu Paulo – um pacote de Papel Higiênico”.

 Recebeu a encomenda, deu um sinal de dedo e grudou os olhos no frasco de balas. Logo seu Paulo entendeu. Estendeu o frasco de balas ao alcance de sua mão que foi generosamente preenchida com balas, as mais variadas. E seu Paulo ainda lhe desejou Feliz Natal. Ele agradeceu e não entregou o dinheiro do pagamento da encomenda. Deu duas aceleradas em seu veículo – “Vruum-vruum” e arrancou queimando os pneus de sua imaginação.

Quando já estava chegando na porta para ganhar a rua ouve o chamado de seu Paulo: “Jorginho” – ele pára e olha para trás. E seu Paulo, ávido por receber o valor da mercadoria fornecida ou fazer a anotação na caderneta, pergunta: “Jorginho – o papel, é pra tomar nota?”. E a resposta, ingênua e objetiva, cheia de lógica: “Não, seu Paulo – é pra limpar o c.....!”. “Vruum, vruum”... e saiu em disparada.

* Raymundo Mello é escritor. Memorialista. Reside em Aracaju
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