Raymundo Mello: Eu, os amigos Frades e o Capitão

*Raymundo Mello. Escritor. Memorialista-Aracaju/Sergipe

Entre 1965 e 1975, cristão católico que sou, frequentei assiduamente a Paróquia Santo Antônio, especialmente a Igreja do Espírito Santo (Avenida Simeão Sobral), participando ali das Celebrações Eucarísticas e outros atos litúrgicos a cargo daquela parcela da igreja arquidiocesana, entregue já de forma tradicional à administração dos Frades Franciscanos (OFM) e ali tive a oportunidade de relacionar-me com um grupo grande de Frades, àquela época, recém-ordenados Sacerdotes, a maioria na Arquidiocese de São Salvador (BA) e que eram deslocados aqui para Sergipe onde, sob a supervisão do Frei Edgar Skannikoviski, realizavam em Aracaju, Socorro, São Cristóvão e outras dependências da Igreja entregue aos Franciscanos um período de estudo e adaptação à sua nova fase, por eles reportado como a Pastoral Eclesiástica.

Era um grupo de frades jovens com uma visão moderna da Igreja Católica, especialmente após o Concílio Vaticano II. Lembro-me de Frei Leônidas, Frei Cleto, Frei Camilo, Frei Adauto, Frei Valeriano, Frei Alexandre, Frei Roberto, Frei Miguel, Frei Marcelino, Frei Flávio, Frei Antônio, Frei Acácio, Frei Adolfo e outros que a memória não ajuda no momento a lembrar. E eles conviviam bem com os frades mais antigos como Frei Eleutério, Frei Osvaldo, Frei Inocêncio, Frei Augusto, o mestre deles todos Frei Edgar Skannikoviski, etc. Alguns faleceram dentro e fora da ordem. Outros deixaram a ordem, casaram, têm filhos, e alguns permanecem. É um prazer reencontrá-los e relembrar aquele período que para mim foi de grande valia.

 Aprendi muito com os Frades. Religião, política, esportes, música, eram assunto constante e cantavam, lanchavam e, claro, rezavam. Um bom período até que eles eram mandados para outras cidades onde exerceriam suas atividades pastorais. De vez em quando, um cartão, uma rápida visita quando vinham a Aracaju. O tempo tornou-nos mais distantes. Chegaram as notícias de que alguns foram deixando a ordem, casando, trabalhando. Depois as notícias de que Frei Fulano faleceu, Frei Beltrano idem, Frei Valeriano foi transferido para a Alemanha, exilado por problemas políticos e lá, deixou a ordem, assumiu atividades civis, casou, constituiu família e, de vez em quando, quando vem ao Brasil (Ceará é sua terra natal) faz um périplo passando por Recife, Aracaju (nos visita) e Salvador. Esse o registro primeiro que faço daquele período (1965-1975).

Na verdade conheci e relacionei-me com muitas pessoas, famílias amigas, conversa aberta e, entre essas amizades, uma figura especial, aliás, uma família especial. O titular da família era um senhor moreno, tranquilo, sempre bem vestido (sem luxo mas bem arrumado), o mesmo sua família, esposa, filhos (um casal) e, por fim, um neto que recebia dele atenção especial. Não sei se ele teve outros netos mas o primeiro conheci.

Foi uma grande coisa o relacionamento com aquele senhor baixinho, educado, fala mansa, um gentleman, o senhor Juvenal e sua esposa, Dona Santa. A princípio e por vários meses apenas um cumprimento formal, umas poucas palavras enquanto eu assistia o bom relacionamento dele com outras pessoas. Ao término de algum ato litúrgico, várias pessoas o alcançavam para uma conversa de porta de igreja e todos saiam satisfeitos. Nunca vi ou ouvi qualquer comentário que o desabonasse ou à sua família. E assim fomos vivendo, ele lá e eu cá, cumprimentando-nos formalmente e, vez por outra, umas palavras a mais. Até que, em 1974, após participarmos de uma Celebração Eucarística, seu Juvenal me convidou com toda a sua mansidão para uma conversa particular, ao lado da igreja. Aceitei o convite e aí então ele me diz delicadamente: “Seu Raymundo, eu estou convidando o senhor, devidamente autorizado, para participar do próximo Cursilho de Cristandade da Arquidiocese de Aracaju. Já dei seu nome lá na direção da equipe e foi aprovado. E então, aceita?”.

Fiquei meio confuso, já tinha ouvido falar nesse movimento da Igreja Católica, mas não sabia de nada sobre o mesmo. Assim, meio vacilante, respondi: “Vamos ver, me informe quando é e o que tenho que fazer para ir ao Cursilho e me dê um prazo para responder”. E ele: “Não tem prazo, é só o senhor decidir e ir fazer a inscrição”. E me disse: “Resolva logo, homem, e vá fazer a inscrição; são somente 45 vagas e tem muita gente querendo ocupar uma delas”.

Arrisquei uma pergunta: “E o que é o Cursilho, como e onde funciona, o que se trata durante o evento?”. E ele: “Homen, não me pergunte essas coisas não, esses detalhes, porque isso você tem que vivenciar participando. Antes do Cursilho o que o senhor tem que saber – local, hora, duração, taxa de inscrição, tudo isso lhe será informado por seu Rodrigo. O mais, só participando. E lhe digo mais: vai valer a pena. É coisa de Deus!”. Aceitei o convite. Acertei junto à esposa e filho, justifiquei a ausência de um dia (a sexta feira) da repartição e fiz a inscrição para o 4.º Cursilho de Cristandade da Arquidiocese de Aracaju, o primeiro a ser efetivado pela equipe local pois o 1.º, o 2.º e o 3.º tinham sido executados sob a direção da equipe da Arquidiocese de São Salvador (BA).

E digo, diante de Deus: Valeu a pena! De 5.ª feira à noite ao final da tarde de domingo, estive cursilhista e saí do Convento de São Francisco, em São Cristóvão, animado para ser cristão no 4.º dia. Ao final do Cursilho, Dom Luciano Duarte fez um encerramento a seu modo, agradeceu e rezou pelos que participaram do evento, especialmente às equipes dirigentes, e fez uma alusão especial ao “Sineteiro” – Capitão Juvenal Santos, dizendo “vejo ali o Capitão Juvenal, pessoa que estimo e que desenvolve um trabalho digno junto à administração da Arquidiocese e esteve aqui com dignidade, como é de seu feitio, tocando a sineta reguladora de todos os horários.

 O Capitão é militar da reserva, esteve na FEB – foi pra guerra lutar na Itália em defesa da democracia. Convivendo com o Capitão, a mansidão em pessoa, não consigo vislumbrar Juvenal de arma na mão atirando nos inimigos, acho que ele foi como integrante da banda de música, tocando tambor. Não foi isso, Juvenal?”. E o Capitão, na delicadeza de sempre: “não senhor, Dom Luciano, fui na linha de fogo, arma em punho disparando a torto e a direito – só não sei se acertei alguém, espero que não, não gostaria de ter ferido ou matado algum inimigo; se aconteceu, paciência”. Todos riram e entenderam esse rápido diálogo.

A partir do Cursilho, estreitei meu relacionamento com o Capitão e senti como ele respeitava o Movimento de Cursilhos, queria que todo mundo participasse. Homem de fé, integrado na Paróquia, amigo dos Frades, foi indicado para Ministro Extraordinário da Comunhão Eucarística, atividade que exercia com todo cuidado e respeito nas Missas, em especial dos sábados e domingos, na Igreja do Espírito Santo, do Santo Antônio ou da comunidade à qual servia, no Alto da Jaqueira.

Muitas vezes recebi a Comunhão de suas mãos trêmulas e, certo dia, após a Missa, resolvi perguntar: “Juvenal, tenho observado você trêmulo ao distribuir a Comunhão. Estou imaginando ou você treme mesmo?”. E ele, bem sério, me respondeu: “É a responsabilidade, meu irmão, que é muito grande – levar Jesus nas mãos e passá-Lo para os fiéis – é tão grande essa responsabilidade que não me sinto merecedor de tão importante tarefa. Por isso, me emociono a cada vez que sou chamado, fico trêmulo e suando, como você está vendo. Não me sinto merecedor de tão elevada missão mas procuro desempenhá-la com todo respeito”. Emocionei-me com sua resposta. Abracei-o e lhe disse: “a sua fé é muito grande. Vá em frente!”.

O Capitão era um homem de fé e transmitia essa fé e força a quem com ele convivia ou simplesmente se relacionava.

Juvenal fez Cursilho em Feira de Santana, encaminhado com mais três companheiros por Dom Luciano e ele, como os outros, nada sabiam sobre Cursilho – seguiu porque o Bispo encaminhou e ele confiava no Bispo. Mas também o Bispo nada lhe disse e ele foi, na confiança, junto com os demais. Chegaram cedo em Feira, apresentaram-se ao Monsenhor que os recebeu e marcou o horário que eles deveriam voltar – “vão caminhar, conhecer um pouco a cidade e às 18 horas estejam aqui”.

Instigado pelos companheiros, perguntou ao Monsenhor: “O senhor pode nos dizer o que é Cursilho?”. E o Monsenhor respondeu: “é uma coisa muito boa, vocês vão ver”. “Mas o senhor não poderia dizer assim mais ou menos o que é, como é?” E o Monsenhor: “Não! É uma coisa muito boa, vocês vão ver, não tenho o que adiantar – vivam o Cursilho e vocês terão a explicação”.

 “Tá danado, o homem é duro. Mais tarde pergunto e ele vai dizer. Passeamos, merendamos e às 18 horas nos apresentamos pra seguir para o local onde seria realizado o Cursilho – e aí tornei a perguntar: e agora, Monsenhor, já pode dizer pra gente o que é Cursilho? E ele disse: É uma coisa de Deus. Mais uma vez: Monsenhor, nós já estamos aqui, não vamos fugir, não dá pra dizer nem um pouquinho pra gente o que é, como é? E ele: Eu já lhe disse que é coisa de Deus – vocês vão viver o Cursilho e no final saberão. 

Vocês estão com medo, é? Vocês não são homens não? Aguardem! E eu disse pros outros: vamos parar com tanta pergunta que o homem já está pondo em dúvida a nossa masculinidade. E realmente, foi certo. Só ao final podemos entender que o Cursilho não se explica, sente-se, vive-se, como tudo o que é de Deus”.

Todas essas coisas ele conversava conosco, rindo, comentando e, vez por outra, entoava um pouco do Decolores, que ele preferia na forma original... “e os pintinhos?”, “Viva vida”, etc... etc... Juvenal já não está conosco. Foi para a casa do Pai com a calma dos puros. Tenho certeza que ele lá está, com sua mansidão, rezando por nós. Um dia a gente se encontra.

Setembro/2014 – Após o desfile da Independência, que ele não perdia.


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