A BATALHA DO FORRÓ NÃO É UMA SIMPLES DISCORDÂNCIA MUSICAL”, DIZ BRAULIO TAVARES

Quem teve a oportunidade de ver a curta temporada de três shows de Braulio Tavares, em 1984, sozinho, acompanhado de um violão em um bar na Praça do Jacaré, em Olinda, não esquece o letrista inspiradíssimo que brincava com a tradição poética popular e com referências cultas e políticas. Tocava com a simplicidade de um menestrel cosmopolita para fazer uma música poética e engraçada, com um pé no regional e outro na contracultura, ainda em voga. Visto dessa maneira, Braulio seria facilmente encarado como a próxima sensação da MPB.

Já morando no Rio de Janeiro, no entanto, o paraibano de 34 anos, à época, acabou enveredando por outros caminhos. Aprofundou seu interesse em literatura, ganhou o pão como roteirista de humor na TV, mergulhou nas traduções de ficção científica, intensificou seus estudos sobre cantadores populares e a cultura nordestina. Tornou-se um cronista de jornal compulsivo e muito produtivo. A música ficou meio de lado e Braulio continuou um segredo para iniciados, respeitado no circuito de palestras em feiras literárias, popular entre leitores de crônica em jornais da Paraíba e entre admiradores de ficção científica. Mas, injustamente, pouco conhecido pelo grande público.

Notado pela sua versatilidade como escritor (em gêneros que vão do cordel aos ensaios, da poesia ao romance, dos contos às traduções), homem de teatro, roteirista de cinema, palestrante, criador contumaz de frases de efeito, ele vem, a seu modo, agitando os meios culturais desde o final dos anos 70. Como compositor, começou a ser gravado por Elba Ramalho em 1980 (Caldeirão dos mitos). Teve composições gravadas também por outros nomes como Antônio Nóbrega e MPB-4. Sua parceria mais produtiva tem sido com o pernambucano Lenine. Recentemente, lançou com o amigo e conterrâneo Jessier Quirino o livro Galos de Campina, que reúne uma peleja em versos inspirada no seu personagem Trupizupe, o Raio da Silibrina, presença recorrente em sua obra.

Braulio consegue a proeza de se interessar por poesia matuta e ficção científica. Gira o país à vontade falando de temas que vão de Otacílio Batista a Isaac Asimov, de quadrinhos a Jorge Luis Borges. Nesta entrevista à Continente, ele fala de seu trabalho na música, sua relação com o Recife, sua parceria com Jessier, seu deslumbramento com a obra de Ariano Suassuna, de cantadores de repente e, claro, de ficção científica.

CONTINENTE De suas muitas atividades – música, crônica, poesia, ensaios, cinema, palestras, traduções – o que mais tem lhe ocupado recentemente?
BRAULIO TAVARES Em 2018, traduzi três livros para o selo Alfaguara, da Companhia das Letras. Uma coletânea de contos de Raymond Chandler, escolhidos por mim, Clans of the Alphane Moon, de Philip K. Dick, e Days of Awe, de A. M. Homes. Os três ainda sem título em português. Participei de uma coletânea de poesia (Lendário livro, Ed. Rubra, Rio de Janeiro) e um folheto de cordel (O tesouro de Antonio Silvino, Ed. Cordel, Mossoró). Afora isto, criei alguns projetos de documentários e séries para TV a cabo, que estão aguardando sinal verde para produção. Para 2019, estou preparando cursos de narrativa cinematográfica e de tradução literária, para algumas universidades e instituições culturais.

CONTINENTE Como surgiu a ideia de juntar forças com Jessier Quirino na peleja que resultou no livro Galos de Campina?
BRAULIO TAVARES Eu e Jessier tínhamos publicados versos em desafio independentemente, cada qual em seu livro. Coube a Kydelmir Dantas a ideia de reuni-los num folheto. A peleja do Raio da Silibrina com o Relampo da Palavra (2007). Agora, a Editora Bagaço reeditou o folheto com outro título, Galos de Campina, e novo projeto gráfico.

CONTINENTE Como foi a experiência de dividir “o palco” com Jessier lendo o poema durante os recentes lançamentos do livro?
BRAULIO TAVARES Para recitar, Jessier é mais “performático” do que eu, é mais ator, sabe encarnar personagens e mimetizar dicções. Eu me viro por outro lado, lançando mão do violão, que toco sofrivelmente, mas com aparente segurança. Jessier é um poeta de imenso talento, que conheço e acompanho desde antes do primeiro livro. Temos uma identificação muito grande, pelo senso de humor, pela faixa etária, pela origem em Campina Grande. Talvez até sejamos parentes, porque o nome de solteira de minha mãe era Cleuza Santa Cruz Quirino, e meu irmão Pedro herdou esse sobrenome materno, enquanto eu herdei o “Tavares” paterno. Jessier criou com sua obra uma vertente muito pessoal da chamada poesia matuta, onde não apenas se reproduz o jeito de falar do “beradêro”, mas também existe espaço para invenções vocabulares e sintáticas, meio à maneira de Guimarães Rosa e de Manoel de Barros, notórios inventores de neologismos e desorganizadores do discurso convencional.

CONTINENTE Qual a origem de “trupizupe” e do “raio da silibrina”, expressões tão sonoras e marcantes usadas nos seus trabalhos? Como elas chegaram até você?
BRAULIO TAVARES São termos correntes na Paraíba. “Trupizupe” é um personagem do folheto A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco, e usa-se para chamar alguém de trapalhão, desajeitado, meio leso. “Raio da Silibrina” quer dizer um cara supercompetente, inteligente, esperto. A origem, reza a lenda, é um antigo farol de carro, muito poderoso, chamado em inglês de “sealed beam”. Comparando com os personagens de Ariano Suassuna, João Grilo seria um raio da silibrina, e Chicó um trupizupe.

CONTINENTE Você já afirmou que a letra da canção Nordeste independente foi feita meio de brincadeira, em parceria com Ivanildo Vila Nova, mas como encara a repercussão que ela tem até hoje entre pessoas que defendem a separação da região?
BRAULIO TAVARES É natural que haja uma rivalidade, um atrito entre as regiões, principalmente quando acontecem políticas públicas que a população considera injustas. Mas uma separação assim, para mim, é impensável. A música tem apenas a intenção de recuperar a autoestima do nordestino e mostrar que não somos cidadãos de segunda classe. Observe que o mote da canção (“Imagine o Brasil ser dividido, e o Nordeste ficar independente”) começa com o mesmo verbo, no imperativo, com que John Lennon começa a sua Imagine. Lennon pretendia que tudo aquilo que ele descreve fosse real? Penso que não. Ele procura apenas cristalizar um espírito, uma atitude, através de uma fantasia da imaginação.

CONTINENTE Como foi seu contato, na juventude, com a cultura popular dos cantadores e cordelistas? 
BRAULIO TAVARES Minha convivência principal com os violeiros se deu nos anos 1970, quando eu morava em Campina Grande. Convivi muito com os poetas entre 1975 e 1980, e ajudei a organizar o Congresso Nacional de Violeiros de Campina Grande nesse período, antes de ir morar no Rio. Participei, em 1979, da Viagem dos Poetas ao Brasil, organizada por Giuseppe Baccaro, que cruzou 13 estados brasileiros com uma caravana de poetas. Publiquei alguns folhetos com letras de minhas canções daqueles tempos, mas não são literatura de cordel propriamente dita.

CONTINENTE Suas viagens pela região do sertão do Pajeú tiveram o objetivo de aprofundar esse interesse? 
BRAULIO TAVARES No Pajeú propriamente dito tenho viajado de cinco anos para cá, motivado pela realização do documentário Bom dia, poeta (2015), dirigido por Alexandre Alencar, onde atuei como entrevistador. É uma homenagem a Lourival Batista, cantador e amigo que deixou muita saudade. O filme foi lançado no ano do centenário dele.

CONTINENTE Que relação você tem com o Recife e com Pernambuco? Conheceu os parceiros Lenine e Antônio Nóbrega ainda aqui ou já no sudeste?BRAULIO TAVARES Meu pai era do Recife, e grande parte de minha família, paterna e materna sempre viveu na cidade. Era o local das minhas férias na infância. Nunca cheguei a morar, mas passava meses inteiros na casa de amigos, ou da minha irmã Clotilde, quando ela fez mestrado na UFPE. Entre os recifenses, conheci Lenine no Recife, em 1978, através do nosso parceiro comum, Zé Rocha. Conheci Antônio Nóbrega através dos outros membros do Quinteto Armorial, de quem fiquei amigo quando eles foram dar aulas na Universidade Federal da Paraíba, em Campina Grande, a partir de 1972.

CONTINENTE Você já afirmou que a leitura do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, mudou sua vida. Como foi o primeiro contato com a obra de dele e de que forma isso influenciou sua produção posterior como escritor?BRAULIO TAVARES Lendo o Romance da Pedra do Reino, percebi que na Paraíba (e por extensão no Nordeste) havia uma pirâmide soterrada, feita de histórias, poemas, lendas, versos, folhetos, cantigas, que eu trazia na memória mas nunca tinha focado na minha atenção. Dos 22 anos em diante, após a leitura do livro de Suassuna, passei a me dedicar a esse universo, tanto como estudioso, quanto como poeta e escritor. É nesse sentido que afirmo que o livro mudou minha vida. Foi um processo de autodescoberta. E de autoestima, porque me mostrou que a Paraíba era tão importante quanto a Grécia Antiga.

CONTINENTE Em 1984, você fez uma temporada memorável de três noites em um bar de Olinda, na Praça do Jacaré, cantando e tocando suas composições. Por que você parou de fazer shows com frequência?
BRAULIO TAVARES Eu fazia muitos shows nessa época, mas com o tempo fui derivando para literatura, TV, e parei de cantar já faz uns dez anos. Volto a cantar de novo, eventualmente, quando sou convidado. Cantar dá trabalho. Tem que ensaiar, praticar violão diariamente, repassar letras das músicas, e ainda tem o “moído” de viajar, passar som etc. Só canto quando me pagam cachê. Deixou de ser divertimento.

CONTINENTE Você chegou a gravar algum disco com suas composições? BRAULIO TAVARES Nunca gravei LP ou CD. No Spotify há o registro de um show que fiz muitos anos atrás, em Natal: Voz, violão e verso. O show foi gravado por minha irmã Clotilde e minha sobrinha Ana Morena Tavares. Há outros registros de shows meus ao vivo, em Campina Grande, no Rio, etc., circulando por aí. Acho que estou mais próximo do espírito da cultura oral do que da indústria fonográfica.

CONTINENTE Com tanto tempo de estrada produzindo e consumindo cultura, você costuma rever alguns conceitos, isto é, tornou-se crítico em relação a coisas que admirava no passado ou reavaliou positivamente coisas que não gostava?
BRAULIO TAVARES Mudo de opinião com frequência com relação ao que é “bom” ou “ruim” esteticamente. Acho isso normal. Obras que eu considerava importantes passam a ser menores, quando a gente descobre obras que são imensamente maiores, em comparação. Mas, de um modo geral, sou fiel aos meus autores da juventude: Borges, Guimarães Rosa, Cortázar, Machado, Drummond, Augusto dos Anjos, Edgar Poe. Outros autores subiram muito em meu conceito quando, décadas depois, passei a estudá-los com profundidade. É o caso de Philip K. Dick, Raymond Chandler etc.

CONTINENTE Cacá Diegues tem dito que no Brasil “a inteligência saiu de moda”. Você concorda com esse tipo de crítica ao panorama cultural contemporâneo?
BRAULIO TAVARES Todas as vezes que as massas ascendem ao consumo e, numa fase seguinte, à produção, essa questão volta a ser colocada. É um processo inevitável. Atualmente, isso se dá com a cultura digital, a internet, etc. Mas tanto na alta cultura quanto na baixa a gente encontra a mediocridade e a obra nova, pulsante, rica de criatividade.

CONTINENTE Em 2010, em um artigo na Continente, você alertava para os efeitos danosos da Internet, que estaria afastando as pessoas ao promover e atender gostos específicos. Agora, com a importância cada vez maior das redes sociais, o que pensa sobre isso?
BRAULIO TAVARES Mantenho o que disse. Em vez de misturar informações e promover a convivência entre grupos distantes, a Internet tem favorecido a concentração de informações e a formação de grupos onde as pessoas só se relacionam com os outros integrantes. Formam-se tribos fechadas, devorando quantidades imensas de informação a respeito de um único tema, e perdendo a oportunidade de ampliar seus conhecimentos, variar suas experiências. Estamos numa fase de mudanças aceleradas, com grande número de variáveis, sujeita a guinadas numa direção imprevista. Algumas dessas guinadas mostram a possibilidade de manipular multidões através do bombardeio concentrado de informação, como indicam a votação do Brexit e as eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.

CONTINENTE Vi, numa palestra em São Paulo, você falando sobre o deslumbre que era receber livros comprados pelo reembolso postal. Esse tipo de encantamento com o objeto físico está se perdendo com a digitalização de tudo?
BRAULIO TAVARES Enquanto o objeto físico continuar a ser produzido, o encantamento vai perdurar, e vice-versa. Nada disso me incomoda. Acho ótimo poder escolher entre o livro de papel e o livro eletrônico. Como dizia Brian Aldiss, o presente não apaga o passado, ele apenas o desloca. E como dizia William Faulkner, o passado não morreu, ele ainda nem terminou de passar.

CONTINENTE Qual é sua relação pessoal com a obra de dois poetas distantes e, ao mesmo tempo, próximos como são Bob Dylan e Patativa do Assaré?
BRAULIO TAVARES Descobri Bob Dylan aos 18 anos e Patativa por volta dos 25, quando saiu a primeira coletânea dele pela Editora Vozes. É sempre difícil comparar pessoas que trabalham em áreas diferentes, é como perguntar quem é melhor, Lionel Messi ou Roger Federer. Dylan é o artista pop que conheço melhor, juntamente com os Beatles. Sempre o acompanhei, já li umas cinco ou seis biografias dele, afora vários livros de estudos sobre sua obra. Vi-o cantar ao vivo no Rio de Janeiro, várias vezes. A obra dele me influenciou muito mais do que a de Patativa. Hoje ele não canta praticamente nada, mas e daí? Pinto do Monteiro, no fim da carreira, também estava ininteligível. A cera da vela se acaba, mas a luz da chama não vacila. Patativa é um poeta maior dentro da poesia popular nordestina, com uma obra que vai muito além dos “poemas matutos” que escreveu. Ele e Dylan se completam, não se excluem. Posso ouvir um de tarde e o outro de noite.

CONTINENTE Com o fim do Jornal da Paraíba, que abrigou sua coluna durante anos, com que frequência você continua escrevendo seus artigos? 
BRAULIO TAVARES Quando o Jornal da Paraíba encerrou sua edição impressa, eu já havia publicado mais de 4 mil artigos, que eram reproduzidos no meu blog Mundo Fantasmo. Desde então, publico no blog mais dois ou três artigos por semana, mas são textos mais longos, mais ricos de informações. Estou no momento com mais de 4.400 artigos à disposição no blog. Escrevo basicamente sobre literatura, cinema, música, poesia, tradução, cordel, ficção científica... Meu próximo objetivo é conseguir patrocínios, porque o blog é um trabalho gratuito.

CONTINENTE No momento de sentar para escrever suas crônicas e seus textos de ficção, você tem algum ritual para fazer as palavras fluírem?BRAULIO TAVARES Não há propriamente um ritual. Abro o Word e vou escrevendo, ou pego um caderno e escrevo à mão, no sofá. Quando estou “sem assunto pronto”, abro arquivos antigos ao acaso e vou mexendo neles até acontecer alguma coisa. Para mim não existe falta de ideias, existe às vezes falta de motivação emocional para escrever, quando a gente está abatido, meio deprimido. Ideias nunca faltaram, nem faltarão.

CONTINENTE Sendo de Campina Grande, qual a sua posição em relação à polêmica que acontece no período das festas juninas entre os defensores do forró tradicional, pé-de-serra, de um lado, e os que acham que o São João deve atender ao gosto predominante no momento, abrindo-se para o forró estilizado e suas variantes?
BRAULIO TAVARES Em princípio, o mês de junho e as festas juninas com dinheiro público deveriam fortalecer a música junina tradicional. Nos outros onze meses do ano, as prefeituras podem mandar tocar o que quiserem. Por outro lado, a batalha do forró pé-de-serra contra a maioria dessas bandas de forró estilizado não é uma simples discordância musical, é a guerra entre músicos pobres que não têm como se impor para alcançar seu público, e músicos ricos que usam do gangsterismo, da propina e do suborno para ocupar os espaços de diversão. O Ministério Público já denunciou inúmeras vezes essas práticas de contratos irregulares e de dinheiro “por baixo do pano” entre bandas e grupos políticos. Não se trata meramente da preferência por este ou aquele ritmo musical. Há uma guerra por um mercado onde circulam muitos milhões.


TEXTO-Revista Continente MARCELO ABREU 21 DE JUNHO DE 2019

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Matrizes do forró podem ser reconhecidas como Patrimônio Cultural do Brasil

O Forró é um dos gêneros musicais mais disseminados no país e faz parte da formação da identidade cultural do brasileiro. As matrizes do forró estão passando por um processo de reconhecimento e identificação como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Em 2011, a Associação Cultural Balaio do Nordeste encaminhou ao Iphan o pedido de registro. Desde então, estão sendo realizados encontros e fóruns para debater a questão e mobilizar profissionais deste gênero musical em diversos estados do país. 

O diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, Hermano Queiroz diz que "O registro de bens culturais de natureza imaterial, significa para além da identificação desse bem e sua valorização, a salvaguarda", explica Hermano. 


Hermano ainda destaca que, apesar de ser natural que um bem cultural se altere com o passar do tempo, é preciso preservar as matrizes que deram origem a essa manifestação.

"Quando se busca o registro se busca pensar em formas e estratégias para fortalecer esses grupos que praticam essas chamadas matrizes tradicionais". No caso do forró, entram nessa categoria o baião, o xaxado, o xote, o forró pé de serra. 

Fonte: Agencia Brasil
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“Forrobodó” ou “for all”, de onde vem a palavra forró?

A banda paraibana Cabruêra desceu ao sul e instalou-se no Rio de Janeiro em setembro de 2001. Lá, fundou a Cabrahouse, primeiro em Copacabana, depois em Santa Teresa, tradicional bairro de artistas. Ao chegar, debutou na TVE e lançou disco no palco da resistência cultural carioca, o Teatro Rival, e assim seguiu arrebanhando um cordão de adoradores. Zé Guilherme, o Munganzé, um dos melhores percussionistas do Brasil, um dos pilares da Cabruêra, vindo aqui em casa, incitou-me a explicar a origem do termo “forró” para uma oficina de percussão no Festival de Inverno de São João del Rey, em Minas Gerais, onde a banda tocaria.

Pois bem. Discutíamos a gênese da palavra a partir de duas explicações para o que se passou a chamar de forró. A primeira está ligada à construção da malha ferroviária no interior de Pernambuco por engenheiros ingleses que, em suas horas de folga, patrocinavam pequenas rodas nas quais a liberdade, municiada pelo consumo de álcool, pontuou a descontração e a dança. Essas rodas eram “for all”, para todos, no idioma nativo dos ingleses. Daí a pronúncia aberta “forró”. Sem registro que legitime tal origem, fica-se no âmbito da lenda.

A segunda é apresentada pelo folclorista Rodrigues de Carvalho, em seu Cancioneiro do Norte de 1903, aponta uma associação entre forró e forrobodó, festa popular das pontas de rua, baile popular aberto para toda a população pobre. Câmara Cascudo registra a mesma origem fazendo um levantamento da aparição do termo desde 1833, para encontrar um variante datada de 1952, num semanário chamado A Lanceta, sem indicação de local. O termo é forrobodança, uma espécie de dança chula popular.

Acredito que essas duas teses sejam insuficientes, mesmo porque fica difícil determinar data para surgimento de qualquer palavra. Respeitando a pesquisa, talento e autoridade dos dois folcloristas, lanço uma terceira via. Quero aproximar o termo português forró, ao termo árabe alforria, liberdade dada aos escravos. Quando um destes era alforriado a palavra “fôrro” servia-lhe de epíteto, recebendo, inclusive um par de sapatos, se para dançar, não sabemos. Elomar, em sua cantiga O Violeiro, canta “Deus fez os home e os bicho tudo fôrro…”. De forria para fôrro, de fôrro para forró, celebração da liberdade, da quebra do jugo e dos grilhões. Não é isso que o forró faz?

Os testemunhos populares na diferenciação entre as festas de São João, festa popular, marca indelével das tradições nordestinas, e Natal, tradição européia, servem de esteio para minha tese. Enquanto a festa de Natal é descrita como uma festa formal, o São João prega a liberdade, é festa livre e comunitária, não requer roupa nova, nem champanhe para comemorar. E todas as classes e raças são chamadas ao arrasta-pé, criando um valor fundamental para a miscigenação de raças e culturas, no dizer de Darcy Ribeiro, e imprescindível para a construção do humanismo, segundo Jorge Amado.

O que nos interessa, também, é a divulgação desse ritmo propagada pelo pioneiro Luiz Gonzaga, primeiro nordestino a assumir compromisso com esse suposto novo estilo musical, depois de fazer o caminho do sul. Falar de Gonzaga é repetir-se, sempre. Sua história e sua vida estão na boca do povo e dos artistas, transformado em ícone institucional na etno-musicalidade brasileira. Muito embora construindo uma realidade folclórica do Nordeste, com seus vaqueiros e cangaceiros, plantou a semente da música popular regional nordestina em todo o Brasil. Asa Branca transformando-se na bandeira, estandarte dessa visão.

Gonzaga sofre, entretanto, críticas oriundas de um outro mito: Jackson do Pandeiro. O ritmista paraibano apregoava que o baião originou-se do coco e que o feito do Rei do Baião não passava de um novo invólucro para um velho ritmo. Zé Guilherme me diz que o jornalista Rômulo Azevêdo, de Campina Grande, numa tentativa de conciliação entre os pilares formadores do forró, um paraibano e o outro pernambucano, defende o império imaginário de Parabuco, um híbrido situado entre Caruaru, a capital do forró, e Campina Grande, terra do maior São João do Mundo. Essa, talvez seja a melhor opção, o lúdico, a criatividade, a liberdade, a alforria.

Fonte: Professor Aderaldo Luciano doutor em Literatura
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O forró pode ser declarado como patrimônio imaterial do Brasil até meados de 2020

O forró pode ser declarado como patrimônio imaterial do Brasil até meados de 2020. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) iniciou pesquisa nos nove estados do Nordeste, mais o Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo para identificar a forma de expressão que além de gêneros musicais diz respeito a festas e interações sociais ao som da sanfona, zabumba e do triângulo.

A iniciativa foi bem acolhida entre os músicos como o maestro Marcos Farias, filho da cantora Marinês (1935-2007) e afilhado de Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião. Segundo ele, muitos grupos e artistas que se denominam “de forró” fazem adaptações de cumbia e zouk (de países hispânicos sul-americanos e caribenhos).

“Tiraram o nosso nome. A gente foi usurpado do título e jogado para essas músicas de características latinas”, reclama. Conforme Farias, o que ocorre é “apropriação indevida”, e esses grupos fazem “oxente music”, brinca.

De acordo com Hermano Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, o trabalho de registro do forró permitirá “mapear as vulnerabilidades, os riscos, a necessidade de promoção do bem”. Ele, no entanto, assinala que “o objetivo do registro não é dar autenticidade a uma narrativa”, e ressalta que há várias narrativas em circulação: “o patrimônio cultural é dinâmico”, explica.

Segundo Queiroz, não é preocupação central saber exatamente em que lugar teria surgido o forró. “A raiz não é o grande problema. O que o registro traz é o potencial de diálogo intercultural entre diversas manifestações”, crê. Ele assinala que a pesquisa do Iphan vai “mapear todos olhares e narrativas sobre esse bem imaterial’ e permitir que músicos de diferentes lugares se conheçam e passem a “ter a compreensão de que embora espraiados em todo o território cultural são irmãos”.

Desde a origem do nome, há mais de uma narrativa sobre a palavra forró. Conforme o maestro Marcos Farias defende a tese de que a palavra tem como origem a expressão em inglês de “for all”.

O termo teria sido forjado ainda no século 19 por causa da presença de trabalhadores ingleses na instalação de ferrovias e de fábricas de tecelagem no Nordeste. “Se produzia mais algodão em Campina Grande que em Liverpool”, costumava explicar Sivuca, segundo o maestro.

A versão da origem anglófila da palavra forró foi atualizada no século 20. Há quem diga que o termo teria surgido na 2ª Guerra Mundial em Natal. A capital do Rio Grande Norte recebeu 10 mil soldados norte-americanos a época do conflito. Essa versão é ilustrada no filme For All - O Trampolim da Vitória (1997), de Buza Ferraz e Luiz Carlos Lacerda.

O etnomusicólogo Carlos Sandroni, professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e responsável pela pesquisa do Iphan, descarta essa versão. Segundo ele, desde o século 19 há uso da palavra forró “para designar uma festa popular com dança, com música e com bebida”.

O especialista também lembra que “edição de dicionário de 1912 tem a palavra forrobodó. Na edição do ano seguinte, já tem forrobodó e forró. Ao que tudo indica forró é uma abreviação de forrobodó”. Conforme o filólogo Evanildo Bechara, forrobodó é originado da palavra galega forbodó.

Além da filologia, geografia e história da música descartariam a formação da palavra forró a partir da expressão inglesa for all. Sandroni tem como hipótese que o forró nasce longe do litoral de Natal. As matrizes originais estariam no interior do Nordeste, em uma área hoje tida como o sertão de Pernambuco, Paraíba e Ceará.

Sandroni também defende que “o forró se tornou uma expressão do povo do Nordeste, de uma maneira de se identificar como nordestino, que se afirma por suas características, por seu valor, por sua identidade”.

“Aos poucos a palavra forró vai se deslocando para designar não só um gênero [de música e festividade] especificamente, mas um guarda-chuva para vários gêneros como o xote, o xaxado, o arrasta-pé, a quadrilha, e o próprio forró”, descreve.

No “balaio de gêneros do forró”, apontado por Sandroni, tem destaque o baião criado por Luiz Gonzaga. O especialista lembra do papel fundamental Gonzagão a partir dos anos 1940 no rádio para a afirmação da cultura nordestina “O baião é uma empreitada consciente do Luiz Gonzaga com os seus parceiros, Humberto Teixeira [1915-197], José Dantas [1921-1962] e outros nessa etapa inicial”.

O maestro Marcos Farias concorda com o etnomusicólogo quanto à centralidade de Gonzagão. “Ele veio trazendo as nossas músicas, o baião, o forró que não existiam. Foi ele que denominou. Ele adaptou e nacionalizou o que hoje é nosso de verdade. Foi a grande voz a alma do povo nordestino. Ele trouxe as nossas alegrias, as nossas frustrações. Trouxe as nossas comidas, trejeitos, trouxe o nosso jeito alegre de levar a vida e fazer as coisas acontecerem”.

Farias conta que até a disposição dos músicos nos palcos de forró é ideia de Gonzagão. “Os baixos da sanfona são graves, então os agudos do triângulo têm que ficar do lado. Ao lado da mão direita, que faz o solo e que é agudo, tem que ficar a zabumba que é grave e, assim, contrabalancear. Ele era minucioso com isso”, detalha.

Conforme Sandroni, os três instrumentos têm origem europeia. “Isso quer dizer que é uma música europeia? Claro que não. A música é muito mais que os instrumentos, é o que se faz com os instrumentos”, pondera.

Segundo ele, “Sanfona é um instrumento evidentemente europeu”. O mesmo pode dizer da zabumba ainda que o senso comum identifique como um tambor africano. “O tipo de construção e de amarração você encontra inclusive na península ibérica”, assinala. O mesmo ocorre com o triângulo, “conhecido como ferrinho em Portugal”.

Antes do Forró, outras formas de expressão musical obtiveram o reconhecimento do Iphan como patrimônio imaterial e constam no Livro do Registro das Formas de Expressão como o caboclinho, a capoeira, o carimbo, o cavalo marinho, o frevo, o jongo, o marabaixo, o maracatu, o samba de partido alto, o samba de terreiro, o samba enredo, o samba de roda, o tambor de criola e os toques dos sinos de igrejas em centros históricos de Minas Gerais.
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Mesmo com proibição do STF, guerra de espadas acontece em Senhor do Bonfim e tem feridos após confronto entre policiais e 'espadeiros'

Mesmo proibidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), 'guerras de espadas' foram registradas durante o São João da cidade de Senhor do Bonfim, na região norte da Bahia, e resultou em um confronto entre policiais e 'espadeiros' que terminou com pessoas feridas, no domingo (23).

Imagens registradas com um celular mostram o momento do confronto [vejo no vídeo acima]. A polícia disparou balas de borracha contra os 'espadeiros' para tentar conter a prática.

Após o confronto, quatro pessoas deram entradas na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da cidade: uma mulher ferida com um tiro de borracha, um homem com ferimento na cabeça resultado do conflito com os policiais e outras duas pessoas, uma que se queimou durante a guerra de espadas e outra que passou mal após inalação de fumaça.

O homem que se feriu na cabeça aparece em um vídeo gravado durante o confronto com os policiais. Não há informações se ele era um espadeiro. As vítimas não tiveram identidades divulgadas. Não há informações atualizadas sobre o estado de saúde dos feridos.

Por meio de nota, a Polícia Militar informou que agentes do 6º Batalhão, com o apoio da Companhia Independe de Policiamento Especializado (CIPE) Caatinga e da Companhia Independente de Policiamento Tático (CIPT) Rondesp Norte, agiram para cumprir a determinação judicial, que há três anos, proíbe a guerra de espadas em Senhor do Bonfim.

A corporação destacou, ainda, que as guarnições utilizaram técnicas e estratégias militares, agindo dentro da legalidade, coibindo a ação dos 'espadeiros' em pontos da cidade. Em alguns momentos, segundo a PM, foi necessário o "uso de agentes químicos e elastômero".

A PM ainda destacou que as guarnições não foram acionadas para socorrer feridos e não houve registro de conduções para a delegacia.

O Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a decisão de uma liminar que proibia a tradicional guerra de espadas na cidade de Senhor do Bonfim no dia 19 de junho. A decisão foi tomada pelo ministro Luiz Fux.

No documento, ele repetiu uma medida da ministra Carmen Lúcia, tomada em maio de 2018, que fala sobre o risco de morte dos praticantes da guerra de espadas.

O pedido de suspensão da liminar foi feito pela prefeitura da cidade, que alegou que a proibição prejudica a economia do município, porque implica diretamente na redução das receitas e na diminuição do turismo no período dos festejos juninos.

No entanto, a decisão do ministro Fux diz que há ausência de plausibilidade na alegação. A mesma avaliação já havia sido feita pela ministra Carmen Lúcia no ano passado.

No começo deste mês, a decisão de proibir a guerra de espadas já havia sido recomendada pelo Ministério Público Estadual da Bahia (MP-BA). A competição com fogos de artifício foi suspensa pelo terceiro ano seguido.

Em 2003 foi instituído o Estatuto do Desarmamento e a proibição da guerra de espadas se baseou no Artigo 16, que trata da posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. Desde então, o Ministério Público acompanha a situação da guerra de espadas.

A partir de 2015, o órgão estadual expediu recomendações com restrições sobre as espadas. A proibição da tradicional "guerra de espadas" já havia sido determinada pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) em 2017, após ser considerado um pedido feito pelo MP-BA.

Já em 2018, o Ministério Público Estadual recomendou ao município de Senhor do Bonfim, que não promova ou coopere com a soltura da guerra de espadas, prática onde fogos de artifício, semelhantes a pequenos foguetes, são utilizados como espadas.

As cidades que recebem mais atenção são Cruz das Almas, Senhor do Bonfim, Santo Antônio de Jesus, Sapeaçu, Muritiba, Cachoeira, Nazaré das Farinhas, Muniz Ferreira, São Felipe, São Félix, Castro Alves e Campo Formoso. Nestes lugares, a cultura da guerra de espadas é muito forte.

Fonte: TV Bahia

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Paraíba: Homenageada, Elba Ramalho faz show inesquecível no Parque do Povo, em Campina Grande

Artista homenageada d’O Maior São João do Mundo 2019, a cantora Elba Ramalho subiu ao palco que recebe seu nome, no Parque do Povo, na noite de domingo, 23, véspera de São João. Em sua apresentação, recebeu grandes nomes da música da brasileira como Rogério Flausino, Zélia Duncan, Toni Garrido, Wilson Sideral, Liv Moraes e Agnes Nunes.

Com o show de Elba Ramalho e convidados, Campina Grande festejou a véspera de São João, principal data do seu calendário junino e ponto alto d’O Maior São João do Mundo. A cantora paraibana, homenageada pela organização do evento, escolheu o Parque do Povo para gravar o DVD comemorativo aos seus 40 anos de carreira.

No principal palco do São João campinense, Elba Ramalho, emocionada, agradeceu ao público por mais este marcante momento da sua trajetória de êxito no cenário musical do Brasil.

Ela interpretou seus principais sucessos, além de músicas consagradas do cenário cultural nordestino, tendo o acompanhamento de artistas que foram especialmente convidados para participar de mais uma edição do Maior São João do Mundo.

A primeira música interpretada “Olha pro céu meu amor” também marcou o início do tradicional show pirotécnico, que sempre acontece no principal dia da maior festa junina do Brasil.

Antes do show, em entrevista coletiva, Elba lembrou que foi em Campina Grande onde estudou e deu início à sua vitoriosa carreira artística, tanto na condição de atriz, quanto de cantora.

Em sua visão, este retorno especial à cidade é um momento de emoção e de reencontro com amigos, familiares e com os milhares de fãs que sempre estiveram ao seu lado em todos os instantes da sua carreira devotada à cultura regional.

Durante o show agradeceu a homenagem que lhe foi prestada, considerando este reconhecimento um dos pontos mais altos da sua vida artística.

“Isto é emoção pura, um momento inesquecível em que divido o palco ao lado de grandes nomes da música brasileira, gente que há muito tempo desejava conhecer a grandiosidade do nosso São João. Este é um momento de grande realização, pois o reconhecimento vem desta cidade que tanto amo e onde comecei a minha vida artística”, afirmou.

Segundo o prefeito de Campina Grande, Romero Rodrigues, Elba sempre desempenhou um grande papel na valorização da cultura nordestina em âmbito nacional, mantendo a chama acesa de imortais artistas como Luiz Gonzaga (Rei do Baião) e Marinês, o que justifica o reconhecimento agora prestado à artista nesta 36ª edição da festa.

“Sem dúvida, trata-se de uma artista extraordinária, que sempre levou para muito longe o nome de Campina Grande, sendo um referencial da nossa música. Por isso, com orgulho, prestamos a ela esta justa homenagem como forma de reconhecimento ao seu talento e a sua inigualável carreira de 40 anos de muito sucesso”, afirmou Romero.

Antes do show, os artistas que fizeram o show com Elba concederam entrevistas coletivas à imprensa paraibana. Zélia Duncan, por exemplo, destacou que o evento promovido em Campina Grande é de magnífica beleza, sendo motivo de realização para qualquer artista se apresentar na cidade, especialmente em momento como este em que Elba Ramalho recebe a justa homenagem de todos os campinenses.

“Hoje (ontem), de fato, concretizo o sonho de conhecer este evento, atendendo ao convite irrecusável de minha amiga Elba Ramalho, a quem também rendo minhas homenagens”, afirmou.

Ainda nesta noite de São João, o Parque do Povo acompanhou com muita empolgação as apresentações do cantor Josemar Souto, abrindo a programação na noite de véspera de São João. Já a banda Candeeiro Natural ficou responsável pelo encerramento de mais uma noitada de shows no Parque do Povo.
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Luiz Gonzaga: 30 anos de Saudades, o Nordeste e a Alma Musical Brasileira

O Brasil celebra no próximo dia 02 de agosto de 2019, os 30 anos da morte do cantor e compositor Luiz Gonzaga, o rei do baião. Luiz Gonzaga, o Lua como também era conhecido, foi essencialmente um telúrico. Ele soube como ninguém cantar o Nordeste e seus problemas. Pernambucano, nordestino, brasileiro, Luiz Gonzaga encantou o Brasil com sua música, tornando-se um daqueles que melhor souberam interpretar sua alma.

Nascido em Exu, no alto sertão de Pernambuco, na chapada do Araripe, ele ganhou o Brasil e o mundo, mas nunca se esqueceu de sua origem. Sua música, precursora da música brasileira, é algo que, embora não possa ser classificada como "de protesto", ou engajada, é, contudo, politicamente comprometida com a busca de solução para a questão regional nordestina, com o desafio de um desenvolvimento nacional mais homogêneo, mais orgânico e menos injusto, portanto.

Telúrico sem ser provinciano, Luiz Gonzaga sabia manter-se preso às circunstâncias regionais sem perder de vista o universal.

Sua sensibilidade para com os problemas sociais, sobretudo nas músicas em parceria com Zé Dantas, era evidente: prenhe de inconformismo, denúncia do abandono a que ainda hoje está sujeito pelo menos um terço da população brasileira, mormente a que vive no chamado semi-árido.

Não estaria exagerando se dissesse que Gonzaga, embora não tivesse exercido atividade política ou partidária, foi um político na acepção ampla do termo. Política, bem o sabemos, é a realização de objetivos coletivos e não se efetua apenas por meio do exercício de cargos públicos, que ele nunca teve. Política é sobretudo ação a serviço da comunidade. Como afirma Alceu Amoroso Lima, é saber, virtude e arte do bem comum.

Outro aspecto político da presença de Luiz Gonzaga foi no resgate da música popular brasileira. O vigor de suas toadas e cantorias tonificou a nossa música, retirando-a do empobrecimento cultural em que se encontrava. Sua música teve um viés nacionalista, ou melhor, brasileiríssimo, que impediu que lavrasse um processo de perda de nossa identidade cultural. Não foi uma música apenas nordestina, mas genuinamente nacional, posto que de defesa de nossas tradições e evocação de nossos valores.

Luiz Gonzaga interpretou o sofrimento e também as poucas alegrias de sua gente. Mas foi por meio de "Asa Branca" que Lua elevou à condição de epopéia a questão nordestina. Certa feita, Gilberto Freyre afirmou que o frevo "Vassourinhas" era nossa marselhesa. Poderíamos dizer, parafraseando Gilberto Freyre, que "Asa Branca" é o hino do Nordeste: o Nordeste na sua visão mais significativamente dramática, o Nordeste na aguda crise da seca.

Gilberto Amado disse a propósito da morte de sua mãe: "Apagou-se aquela luz no meio de todos nós". Para o Nordeste, e tenho certeza para todo o país, a morte de Luiz Gonzaga foi o apagar de um grande clarão. Mas com seu desaparecimento não cessou de florescer a mensagem que deixou, por meio da poesia, da música e da divulgação da cultura do Nordeste.

Em sua obra ele está vivo e vive no sertão, no pampa, na cidade grande, na boca do povo, no gemer da sanfona, no coração e na alma da gente brasileira, pois, como disse Fernando Pessoa, "quem, morrendo, deixa escrito um belo verso, deixou mais ricos os céus e a terra, e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente".

Fonte: Marco Maciel, foi vice-presidente da República. Foi governador do Estado de Pernambuco (1979-82), senador pelo PFL-PE (1982-94) e ministro da Educação (governo Sarney).
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