Durante a Fliporto, Alberto Manguel, argentino e cidadão canadense, renomado
escritor, ensaísta, crítico, leitor voraz e grande bibliófilo, lançou a obra
inédita Todos os homens são mentirosos. Independente do valor da obra, sua
passagem por Olinda vai ficar marcada pela ácida e rancorosa ofensa que dirigiu
a Vargas Llosa: “Vargas Llosa é um ser humano imundo”.
Seu conterrâneo, Ricardo Piglia, mais comedido, não saiu do terreno
literário ao criticar o mais novo ganhador do prêmio Nobel de literatura,
taxando-o de “superficial” em razão da “representação esquemática da América
Latina”, concluindo que “ele (Llosa) persegue moldes europeus” (é discussão de
“cachorro grande”, não chegando, portanto, para o meu “bico”).
O que me intriga nas discussões, nos debates, no confronto de idéias, em
qualquer campo (acadêmico, forense, político e por aí vai), é o abandono da
ciência, da arte e da ética do discurso, estruturadas, há milênios por
Aristóteles em quatro vertentes: a poética, a retórica, a dialética e a
analítica (hoje denominada lógica), e especialmente, a negação das duas que
lidam com a arte da discussão, a retórica e a dialética, ambas que, por métodos
distintos, buscam a persuasão e a posse da razão. Em troca, é usada a pedrada
da ofensa; é disparada a flecha envenenada da desqualificação pessoal; é
lançada sobre o contendor a fúria infamante e rancorosa.
O que leva um debatedor a lançar mão de tão indigno expediente? O pecado
capital da inveja? A enfermidade ocupacional da maioria dos intelectuais que
funde vaidade insaciável e arrogância incontrolável? No caso, a prevenção
ideológica birrenta, caolha, inflexível em relação a Llosa que pensa diferente
do esquerdismo bolorento da América Latina?
É legitimo suspeitar que haja um pouco ou muito de cada razão embrenhada na
misteriosa alma humana. É legítimo suspeitar, também, quanto ao uso do
estratagema da patifaria intelectual segundo o qual o fundamental é ganhar a
discussão a ferro e a fogo, por meios limpos ou sujos, lícitos ou ilícitos.
Sobre o assunto, o notável filósofo alemão Arthur Schopenhauer deixou uma
obra inconclusa, postumamente publicada e denominada A arte de ter razão ou
como vencer um debate sem precisar ter razão a qual ele define como Dialética
Erística. O próprio filósofo troca em miúdos sua definição ao afirmar no
intróito: “É a arte de discutir, mais precisamente a arte de discutir de modo a
vencer por meios lícitos ou ilícitos”.
Não se pense que Schopenhauer era um sofista a sacanear seus contendores
(entre eles Hegel). Pelo contrário. O princípio norteador dos 38 estratagemas
por ele formulados é o principio das vacinas segundo o qual o mal se cura com o
próprio mal, ou seja, o filósofo alemão partia do princípio de que a tagarelice,
a desonestidade argumentativa, a verborragia desleal, recheada de clichês,
enfim, a perversa natureza humana que aflora nestas pelejas precisa ser
combatida com o conhecimento das armadilhas e artimanhas do adversário.
A leitura não é fácil. É pesada. A compreensão dos estratagemas exige, além
de detida análise, o esforço adicional no sentido de identificar o enunciado
das proposições na experiência da vida real e, com isto, emprestar utilidade
prática aos ensinamentos contidos em cada estratagema.
Com efeito, alguns são de fácil compreensão e uso freqüente a exemplo dos
rótulos odiosos, a manipulação semântica, a provocação da ira, a armadilha da
premissa falsa; outros, mais sofisticados, devidamente encadeados e adaptados
às situações concretas, inapelavelmente, desnorteiam o adversário.
Porém o mais odioso de todos está no último estratagema assim descrito: “O
uso das ofensas pessoais consiste em sair do objeto da discussão e passar ao
contendor, atacando, de uma maneira ou de outra, a sua pessoa”. Alberto Manguel
não fez por menos.
E qualquer semelhança com o debate político nacional não é mera
coincidência.
Fonte: Jornal do Commercio