‘QUEM COMPREENDE MAL A ARTE, COMPREENDE MAL A SI MESMO’ – FREUD

"De que adianta falar de motivos, às vezes basta um só, às vezes nem juntando todos." [José Saramago]

Quase 90% dos brasileiros não vão aos museus, dizia uma pesquisa em 2010. Os índices melhoram um pouco em 2017, mas não muito (81% não frequentam museus, 92% preferem a tevê e outras mídias). O que nos leva a questionar a relação do brasileiro com a Arte, com este conhecimento tão importante para a compreensão do que somos, não só como brasileiros, mas como seres humanos.

As polêmicas envolvendo as quatro obras do “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, em Porto Alegre em meados deste 2017, ou mesmo a acusação descabida de pedofilia dentro do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), revelam não só uma incompreensão da Arte, mas uma incompreensão do que somos como sujeitos históricos, pois ao censurarmos a Arte, limitamos nossas capacidades cognitivas e de revisão/revolução da História.

Obra “Las Meninas”, de Diego Velázquez, em 1656 (Crédito: Diego Velázquez/Domínio Público)

Há uma lapidar pintura de Diego Velázquez que parece nos revelar o poder da arte, sua potencialidade e sua capacidade de nos dar motivos para reflexão além da vida comum, das discussões comezinhas, dos argumentos rasos que circulam nas mídias sociais ou na grande mídia.

A pintura é conhecida como “As Meninas” e fora terminada em 1656, em pleno Barroco espanhol. Nesse maravilhoso quadro barroco há muito o que aprender, e um dos aprendizados, um de seus motivos, é: a assertiva de que a arte é pura provocação à alma. Se a alma é pequena, não há olhos para a Arte, pois ela não se revela.

O quadro é uma incitação à inteligência, uma convocação para espíritos livres. Os traços e cores em contraste típicos do Barroco mostram o culto dos  opostos, o jogo antitético, em que a luz e o branco das crianças brincam com o escuro e preto das vestimentas dos adultos. A mãos e a testa iluminadas do pintor-personagem do quadro revelam que a iluminação está no fazer (mãos, na sensibilidade) e na razão (testa, cabeça). Mas o centro da tela não é a menina, a infanta, a princesa, filha do Rei Felipe IV. O centro do quadro está fora dele: está nos olhos do espectador. Velázquez foi genial ao pintar este quadro, pois o centro  é o paradoxo que ele nos coloca. O paradoxo da reflexão do papel da arte naquele que a lê. Assim a Arte se nos revela (paradoxo central e maior).

O centro de tudo, portanto, é o leitor dialógico, que dialoga e interage, e não o mero espectador de tevê que apenas recebe passivamente o conteúdo mastigado (sem sequer aprofundar a reflexão). A arte nos cobra dialogismo, a tevê nos dá conformismo.

Ler Arte, é compreender a si mesmo. Freud explica

Um primeiro exemplo de que arte é provocação ao espírito encontramos em Sigmund Freud, que era um grande analista de arte. Gostava e gastava tempo lendo Sir Conan Doyle, por exemplo, autor de Sherlock Holmes. E muito do que Freud usou na “Interpretação dos Sonhos” (1905) ou para formular o conceito do “Complexo de Édipo” foi retirado da Literatura, portanto, da Arte. Está em Freud a frase psicanalítica mais contundente que se possa ler sobre o que é a Arte: “Quem compreende mal a arte, compreende mal a si mesmo”. 

A sentença é acachapante, pois mostra que compreender vai muito da curiosidade do leitor de um livro, da argúcia do espectador de uma tela, da coragem da plateia de teatro, ou da reflexão de quem assiste um filme, ou na opinião de quem vê tevê, ou interage em redes sociais. Já que Arte só o é aos olhos de quem lê com vivacidade.

Um segundo exemplo, está em um dos mais cruciais pensadores do século XX, Michel Foucault, que no primeiro capítulo do livro “As palavras e as coisas” (1966) analisa a pintura de Diego Velázquez. E ao analisar, Foucault nos dá duas sentenças primorosas:

1) “Olhamos um quadro de onde o pintor nos contempla”, esta sentença lapidar de Foucault, nos mostra que o ponto de fuga do quadro está fora dele. O quadro de Velázquez quebra a “quarta parede” – termo usado no teatro, para chamar o espectador para a interação com a peça. A quebra da “quarta parede” em uma pintura é mais sutil para o leitor desatento. Talvez ele nunca note que as figuras centrais do quadro estão no espelho ao fundo da tela de Velázquez. São as silhuetas de um casal, provavelmente o rei e rainha da Espanha.

O rei e a rainha estão fora do plano do quadro, estão no lugar do contemplador da tela. Estão fora da peça, estão fora da tela. Ou seja, o rei e a rainha são os olhos do espectador (ou “Expectador”, pois está externo à tela), do leitor, daquele que sabe ler a vida na arte e arte na vida. Por isso, olhamos um quadro em que o pintor nos contempla, pois ele nos incita a pensar. E existe contemplação maior na arte quando ela nos incita a pensar, a sentir e a viver outros planos? Não há, porque Arte é reflexão e lucidez atemporal.

2) “O pintor só dirige seu olhar para nós na medida que nos encontramos no lugar de seu motivo”, esta outra sentença do pensador francês, a qual mostra que o quadro está nos chamando para o diálogo, para o DIALOGISMO, já que é a tela que nos olha. Já que é ela que ganha vida em nossos vivos olhares. Porque um objeto sem a curiosidade, a coragem investigativa ou a reflexão do leitor não é uma obra de arte, mas apenas um objeto inanimado.

Sabemos que brasileiros leem pouco. É apenas a décima atividade em uma lista de lazeres. Preferimos ficar na TV, na Internet, no WhatsApp, no Instagram e no Facebook, antes de ler um livro ou visitar um museu. Ou seja, não se pode esperar muito do brasileiro que só assiste TV como crítico de arte. Por isso é importante não nos perdermos em motivos toscos, mesquinhos, morais, superficiais e rasos, como quer qualquer grupelho incitador de ódio e ignorância.

A arte incita a reflexão, a sensibilidade e a inteligência. Faz o homem questionar seus valores morais e históricos. Provoca a alma. Nos convida para uma ética da reflexão e da interação. A arte faz parte de uma espécie de “Humanismo da Alteridade”, diria Augusto Ponzio, pensador italiano que escreveu “A Revolução Bakhtiniana” (Editora Contexto, 2008), pois nos coloca em contato com outras perspectivas, outros modos de ver, outros modos de viver (“alter“, do latim, quer dizer “outro”). Melhorando assim nossa humanidade. Pois a arte nos alarga o modo de ver.

Falar de motivos no Brasil é fácil, se ele for gerido pelo ódio, pela ignorância, aí nem precisa juntar todos os motivos, pois um já nos bastaria e nos encerraria.

Contudo, se formos falar de arte, basta um único/outro motivo para sairmos do ódio: o uso da inteligência em benefício do aprimoramento do convívio social.

Basta saber ler e estar eticamente aberto ao diálogo, saber interagir da “quarta parede”.

Pois “As meninas” do quadro de Velázquez não são as meninas pintadas, entretanto são as meninas dos olhos do espectador atento e sem preconceitos e ódios, mas livre.

Para tanto, procurar saber o porquê da Arte já seria um bom motivo. E ele paradoxalmente nos bastaria. 

Ou como diria o poeta: “A arte existe porque a vida não basta.”

**Fonte: Fabrício César de Oliveira é doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos.
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RAIMUNDO CARRERO COMPLETA 70 ANOS COM BIOGRAFIA QUE ORGULHA BRASILEIROS

O escritor Raimundo Carrero, completa no dia 20 de dezembro, sete décadas bem vividas e muito bem contadas, com uma biografia que orgulha a todos os sertanejos, sempre representados na literatura de Carrero. Por isso a cidade de Salgueiro preparou uma programação especial para celebrar a vida do “filho ilustre”.

Uma iniciativa da deputada federal Creuza Pereira, que convidou admiradores de Carrero, para criar uma comissão e realizar as celebrações, nos dias 8 e 9 de dezembro na terra do escritor. Que vai de uma solenidade especial na Câmara de Vereadores do município a festivais de literatura, que será realizado por alunos de escolas de referência do Estado, inclusive a Escola Carlos Pena Filho onde o escritor estudou na adolescência. Os artistas salgueirenses estarão representados através da homenagem do jovem Danilo Pernambucano e do contemporâneo Maestro Zé Paixão.

“Jamais os salgueirenses poderiam deixar passar em branco o aniversário do filho querido, celebrar os 70 anos do conterrâneo e amigo Raimundo Carrero é aplaudir uma vida dedicada à literatura e a cultura, aplaudir uma vida tão bonita quanto as suas obras” comentou Creuza Pereira.

Programação completa:
08/12 – sexta-feira
9h – Sessão Solene em homenagem aos 70 anos do escritor salgueirense Raimundo Carrero                                                                                           Local: Câmara de Vereadores de Salgueiro

14h –Visita aos stands do Projeto de Literatura, Arte e Dança
19h – Festival Literatura, Arte e Dança, homenagem da Escola de Referência de Salgueiro – EREMSAL –ao escritor Raimundo Carrero                                 Local: Clube Talismã

09/12 – sábado
9h – Homenagem da Escola de Referência Carlos Pena Filho ao ex-aluno e escritor Raimundo Carrero                                                                             Local: Escola Carlos Pena Filho.
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ENCONTRO DE SANFONEIROS NO RECIFE HOMENAGEIA LUIZ GONZAGA

O Encontro de Sanfoneiros do Recife realiza a sua 20ª edição e tem o objetivo de divulgar a música popular regional e a sanfona para várias gerações. O encontro, que acontece desde 1998, busca manter viva a memória de Luiz Gonzaga e o instrumento que o imortalizou: a sanfona. Para isso, o produtor do evento, Marcos Veloso, dará aos sanfoneiros, a oportunidade de mostrar o trabalho deles e, consecutivamente, fazer diversas homenagens ao Mestre Lua.

O evento, que é gratuito, é realizado entre os dias 01 e 02 de dezembro na Praça Luiz Gonzaga, no bairro dos Torrões, no Recife, a partir das 8h e segue até 22h. 

A história da sanfona se confunde com as aventuras e desventuras do Sertão nordestino, com o rebuliço, o “xenhenhêm”, o mexe-mexe, em uma toada caboclamente brasileira. A sanfona elege a nossa terra como pátria não de nascimento, mas de identidade. E é na figura de Gonzagão que ela encontra seu mais ilustre representante. 

Nascido em Exu, Sertão de Pernambuco, no dia 13 de dezembro de 1912, serviu ao exército, o que lhe permitiu viajar por vários estados do Brasil. Em 1939, decidiu residir no Rio de Janeiro e tentar a vida como cantor e sanfoneiro, arte que teria aprendido com o seu pai, Januário. Tocou nas ruas e cabarés, até ser aclamado no programa de Ary Barroso, na Rádio Nacional. A partir deste momento, foi reconhecido como o Rei do Baião.

É, portanto, inspirado na personalidade lendária de Seu Lua que, em 1998, Marcos Veloso, decide, junto com Paulo Alves, reunir artistas anônimos e ilustres espalhados por todos os rincões do Estado. Realizado sempre em dezembro, mês do nascimento de Luiz Gonzaga, o encontro já homenageou personalidades da música como Joquinha Gonzaga (sobrinho de Gonzaga), Arlindo dos 8 Baixos, Gennaro, Mestre Camarão, Terezinha do Acordeon, Chiquinha Gonzaga, Oswaldinho, Dominguinhos, Zé Bicudo, Severo, Lindu (ex-sanfoneiro do Trio Nordestino), Abdias, Félix Porfírio, Zé de Dande, Agostinho do Acordeom, Luizinho Calixto, Joana Angélica e Heleno dos 8 Baixos.

O evento promove o intercâmbio entre músicos de diferentes regiões de Pernambuco e de outros estados brasileiros, e divulga a obra de um dos maiores ícones da música brasileira: Luiz Gonzaga.
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PRODUTIVOS LAPSOS DE INSÔNIA

Uma velha amiga me confidencia que, quando muito jovem, sonhava em poder dormir até mais tarde sem precisar levar as crianças à escola, no início da manhã. Agora que a idade chegou e que já não tem crianças em casa, o sono é pouco e rarefeito. 

Ou seja, até em matéria de dormir bem tudo tem o seu tempo. Saber lidar com essa estranha cronologia é um desafio. Creio que pelo hábito de dormir pouco, que conservo desde a adolescência, gastei muito menos horas de sono do que a maioria dos viventes e agora, como uma espécie de punição, dei para sofrer com lapsos de insônia. 

Acontece assim. No meio da noite, sem ter nem pra quê, perco o sono por umas duas ou três dezenas de minutos e me deparo com uma espécie de monólogo, com pauta bem definida.

Tem vez que continuo a reflexão do dia anterior sobre um problema de governo, uma questão de ordem política ou teórica que vem me acicatando a mente ou mesmo sobre lances do bom jogo de futebol, que vi na TV. Os temas até que são prazerosos. Ruim é a sensação de que despertarei no início manhã com a desagradável sensação de que fiquei devendo uma cota de repouso ao meu já sambado corpo e ao sempre irrequieto espírito.

Mas bem que poderia ter uma pauta mais suave. Ao invés de problemas pendentes, quem sabe versos de Neruda, ou de Drummond, ou de Bandeira ou de Mia Couto, ou um trecho de boa crônica de Rubem Braga ou uma canção de Lenine ou Chico. Não sei por que razão, minha sina é ter os lapsos insones ocupados invariavelmente por temas mais densos ou áridos. 

Então, resolvi tirar proveito do estranho fenômeno. A depender do assunto que venha à tona, faço mentalmente o esboço do meu próximo artigo ou crônica. Ou do roteiro de uma intervenção num debate próximo. Aqui mesmo, confesso a vocês que me brindam com a generosidade de me lerem, vários dos meus últimos textos foram "rascunhados" em plena madrugada, naquele vácuo que antecede a volta ao reino de Morfeu.

Apenas lamento não ter o dom dos poetas para poder dizer, como Carlos Pena Filho: “Lembranças são lembranças, mesmo pobres,/olha pois este jogo de exilado/e vê se entre as lembranças te descobres”.

Fonte: * Luciano Siqueira é vice-prefeito do Recife e escreve ao Blog da Folha
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MÚSICOS DE PERNAMBUCO CRIAM GRUPO PARA COBRAR POLÍTICAS CULTURAIS DO GOVERNO

Representantes de diversos segmentos da classe artística musical pernambucana lançaram uma série de reivindicações em relação a contratação durante os ciclos festivos no Estados. Composto por nomes como Nena Queiroga, Maestro Forró, André Rio, Karynna Spinelli, Marrom Brasileiro e Luciano Magno, entre outros 11 músicos, o Coletivo Pernambuco divulgou uma carta com reivindicações de mudanças na política cultural do Estado.

No documento, o Coletivo Pernambuco apresenta cinco pautas por melhores oportunidades e condições de trabalho: maior inserção de artistas locais nas grades oficiais dos eventos realizados durante os ciclos festivos (Carnaval, São João e Natal); atualização dos valores de cachês; revisão da política de prazos de pagamentos dos artistas; melhorias na divulgação das programações dos ciclos festivos e mudanças nas cláusulas contratuais de shows e editais públicos.

Segundo Nena Queiroga, que ao lado de Jota Michiles será homenageada do Carnaval do Recife 2018, a congregação de artistas teve início ainda em 2012 para cobrar maior transparência no processo de contratação e pagamento de artistas no carnaval. "São demandas antigas, que independem 'dessa ou daquela gestão'. Hoje nós nos unimos para falar sobre uma realidade que atinge músicos de todos os segmentos", conta a cantora.

"Estamos reivindicando este diálogo para que a gente volte a ter autoestima, para que as pessoas param e olhar para nós, artistas que representam a cultura pernambucana, com aquele olhar de pena por conta da realidade que enfrentamos", afirma Nena. 

A artista explica que além da divulgação da carta, o coletivo tem procurado se reunir com representantes das esferas municipais e estadual para apresentar as deliberações: "Nos reunimos com o vice-governador e iniciamos um diálogo sobre estas pautas. Aguardamos agora um retorno para audiências com o governador Paulo Câmara, com o prefeito do Recife, Geraldo Julio, e com o secretário de Turismo, Felipe Carreras, que devem ocorrer nas próximas semanas".

Outro integrante do Coletivo Pernambuco, André Rio conta que a situação não se resume à Região Metropolitana do Recife. "Existem aproximadamente 140 festas da padroeira em todo o estado. Nós sempre nos apresentamos como representantes da cultura pernambucana nesses eventos, dividindo espaço, de forma muito democrática, com representante de outras culturas. Porém, nos últimos anos temos perdido cada vez mais espaço", conta. 

Vocalista do grupo Som da Terra, Rominho Pimentel, acredita que a Fundarpe, a Secretaria de Cultura e a Empetur precisam agir como mediadores no processo licitatório e contratual dos polos festivos municipais. "É importante que eles cumpram este papel, porque muitas vezes as gestões municipais solicitam artistas que não têm nada a ver com estes ciclos, tomando espaço de representantes da cultura pernambucana", pondera o músico.
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PETROLINA DISCUTE PLANO DE CULTURA ESTADUAL DE PERNAMBUCO

A Pré-Conferência RegionaL de Cultura de Pernambuco aconteceu nesta terça-feira (28) no auditório do Senai, Petrolina. O Secretário de Cultura de Pernambuco, Marcelino Granja, Silvana Meireles, coordenadora da comissão organizadora, Maria Elena, Secretária de Cultura de Petrolina e diversas lideranças de movimentos sociais de Orocó, Cabrobó, Santa Maria da Boa Vista, Lagoa Grande e Dormentes participaram da plenária.

O objetivo do encontro é ouvir todos os segmentos envolvidos na arte e cultura para aprovar o Plano Estadual de Cultura de Pernambuco. "A proposta é afirmar que todos tem o lugar e direito a voz na elaboração da política pública de cultura com fundamento de desenvolvimento e luta de uma sociedade democrática", disse Marcelino.

Além de Petrolina acontece pré-conferências no Recife, na Região do Pajeú, Mata Norte e Sul, Sertão de Itaparica e Moxotó. A Plenária Final está marcada para acontecer em março de 2018, com o tema: “Um Plano Estadual de Cultura para Pernambuco”.  

“Será uma Conferência que reunirá fazedores de cultura da sociedade civil e do poder público para discutir e aprovar a proposta do Plano Estadual de Cultura de Pernambuco, ajudando, portanto a estruturar e consolidar o Sistema Estadual de Cultura de Pernambuco e democratizar ainda mais os processos de participação social nas políticas públicas de cultura”, finalizou Marcelino Granja.
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ANA DAS CARRANCAS E ZÉ VICENTE: A ARTE DO BARRO E A SÍNTESE DE UM AMOR PELA CULTURA

"Ana Leopoldina Santos Lima era o nome dela. Isso muito antes de o barro moldar seu destino lhe dando por amor um homem que não tinha olhos para enxergá-la. Os monstros gerados pelas mãos de Ana eram cegos como o companheiro de sua vida. Com um golpe rápido, certeiro, ela vazava os olhos de suas criaturas com a ponta de um pedaço de pau. Com Ana era assim, a desgraça virava épico". 

Ana "partiu para o sertão da eternidade" numa quarta-feira dia primeiro de outubro de 2008, aos 85 anos, a maior carranqueira do São Francisco voltou ao barro que a fez. E deixou Zé dos Barros, pela primeira vez, na escuridão.

Ela era uma mulher de solenidades. Não falava, entoava. “Minha vida é extensa...”, era a frase com que iniciava a narrativa. Analfabeta, fazia literatura pela boca. E mesmo limitada por uma seqüência de derrames, parte dos dedos com que tocava a lama do mundo paralisados, Ana era grande. Carregava nos gestos uma largura de alma. E o rio era seu espelho em mais de um sentido. A mulher que moldava o barro do chão só pisava o reflexo do céu. 

Ana das Carrancas costumava dizer que sua arte era a síntese de seu amor por um cego que via o mundo mas não era visto por ele. Entre ela e Zé dos Barros nunca se soube quem era criador, quem era criatura. 

Ela já veio ao mundo retirante, na cidade pernambucana de Santa Filomena. Mas diferente de quase todos, nunca lamentou a terra estéril sob seus pés. A estirpe de mulheres da qual era continuidade moldava pratos, panelas, vasos. Ana aprendeu com a mãe, e antes dela a avó, que do barro se arranca tudo, até a vida.

Uns poucos anos depois dela, José Vicente de Barros nasceu em Jenipapo, outro canto sertanejo. Desembarcou na vida sem olhos, por culpa do amor incestuoso entre primo-irmãos. Desde cedo a ele ensinaram que “quando Deus faz uma criança sem vista é porque quer que ela sobreviva como pedinte”. Para se localizar na escuridão, desde menino ele balançava a cabeça. E nesse de lá pra cá, de cá pra lá, encontrava equilíbrio mesmo nas trevas.

Ana e Zé só cruzaram seus pés descalços quase trinta anos mais tarde. Ana tornara-se viúva desde que seu marido despencara de um pau-de-arara. Conheceu Zé pedindo esmolas na feira de Picos, Piauí. Ele balançava guizos, cantava cantigas. Mas era um cego desaforado por anos ouvindo os meninos mangando dele, pegando nele. Ana, não. Era resignada, como costumam ser as mulheres com fome e filhos para dar de comer. Ana dava comida a Zé sem que ele precisasse implorar.
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Um dia a vizinha abordou Ana na rua. “Desenteirei açúcar do meu filho para dar esmola a Zé”, queixou-se. O rosto de Ana queimou de vergonha. Tirou uma nota do bolso e retrucou: “Enteire de novo o açúcar do seu filho. Por Zé ele não vai passar fome”. Naquela noite não dormiu. Sua tristeza não coube na rede que dividia com Zé. Quando acordou, chamou o marido e anunciou: “Meu velho, nunca lhe fiz um pedido. Mas hoje lhe peço. De agora em diante, você não vai mais pedir esmola". Assustado, Zé rebateu: “Deus me fez sem vista para que eu pedisse esmola”. Ana fincou pé: “De hoje em diante sua vista é a minha. Você pisa o barro, eu faço a peça. Nós vamos levar para a feira, nós vamos ser felizes”.

Ana pegou a enxada e caminhou até as margens do São Francisco, em Petrolina. Diante da fartura de líquidos, invocou o espírito do rio: “Meu grande Nosso Senhor São Francisco. Pelo poder que ostenta, pelas águas que estão correndo, do próprio barro melhore a nossa vida”. 

Ao terminar, juntou um bolo de lama e fez, sem que até hoje saiba como, a primeira carranca. Começou levando na feira, suportando calada riso e maldades. “É tão feia quanto a dona”, cutucavam. No dia seguinte, em vez de uma, Ana levava duas. Até que caiu nas graças dos turistas e dos ricos da cidade e, de lá, suas obras ganharam o mundo. Ela então deixou de ser Ana do Cego e virou Ana das Carrancas. E ele virou Zé dos Barros.

As carrancas de Ana são diferentes de todas as outras que, desde o final do século XIX, apontaram a face horrenda na proa das barcas do São Francisco. A maioria dos carranqueiros célebres esculpe em madeira, Ana, em barro. Mas a maior singularidade são mesmo os olhos vazados. São eles que dão a expressão melancólica, contendo mais sofrimento do que ameaça, à obra de Ana. É do feminino que Ana tira sua carranca dilacerada diante da dor do mundo.

Os traços deformados das carrancas de Ana expressam, pelo avesso, a perfeição de seu amor. É este sentimento avassalador que tomava conta de Ana, anos atrás, quando ela começou a pressentir que o fio de sua vida atingia seu cumprimento. “O barro é como gente. Tem o barro ruim e o barro bom. E até o barro regular. Conhecendo o barro se conhece o mundo”, sussurrava ela. “O barro é o começo e o fim de tudo. Sem ele não sou ninguém. Foi ele que me deu o direito. Não me separo dele pra coisa nenhuma, porque eu amo aquilo que ama a mim. O barro é um caco de mim. Nas minhas veias corre sangue de barro.”

As lágrimas abriam então sulcos em sua face. Por um momento, ela assemelhava-se à sua criação. Movia o rosto em direção a Zé, que não a via com os olhos, mas era o único a abarcá-la por completo. Ana então dizia: “Não estou pedindo a morte. Mas quando eu me for, qualquer pedacinho de orelha, nariz ou olho é lembrança dele. E de mim”. 

Zé Vicente infartou em 2014...ganhou definitivamente Luz...

Fonte: Eliane Brum-Jornalista
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