De acordo com o senso comum, todo brasileiro é, potencialmente, um técnico de futebol. A cada nova convocação da seleção brasileira, muitos de nosso compatriotas sugerem determinados jogadores, questionam a presença de outros ou opinam sobre o melhor esquema tático a ser adotado. No entanto, com o advento das redes sociais, cada cidadão tupiniquim já não é apenas um potencial treinador futebolístico, também passou a ser crítico musical, analista político, especialista em arte e comentarista geopolítico. Nesse sentido, nos últimos dias o espaço virtual foi tomado por inúmeros “especialistas em Venezuela”.
Antes de observarmos de uma maneira mais aprofundada quais são os posicionamentos dos “especialistas em política venezuelana” é de suma importância identificar a quais referenciais estes indivíduos recorrem para construir os seus argumentos. Conforme pude constatar em meu livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com o professor de Geografia da UFSJ Vicente Leão), as pessoas, de modo geral, tendem a se interessar por uma determinada temática geopolítica quando ela está em evidência nos principais noticiários da grande imprensa. Se o público vai aderir ou não aos discursos geopolíticos da mídia hegemônica, aí já é outra história.
Porém, se formos levar em consideração que quanto menor a familiaridade de um indivíduo com um assunto qualquer, maiores são as chances de ele aderir aos discursos midiáticos, é plausível concluir que os imaginários geopolíticos da maioria das pessoas (isto é, as representações que fazemos sobre outros países), devido ao distanciamento espacial dos fatos que ocorrem alhures, tendem a ser formados, majoritariamente, a partir das narrativas midiáticas.
Pois bem, dito isso, é interessante analisarmos como a Venezuela é apresentada nos discursos da grande mídia brasileira. Quais possíveis interesses ideológicos estariam por trás de tais representações? Quais são as fontes de informações de nossos principais grupos de comunicação?
Conforme atestou o professor da área de comunicação Daya Kishan Thussu, cerca de 80% do conteúdo dos noticiários internacionais que circulam pelo planeta são distribuídos por apenas quatro agências — Associated Press (AP), United Press International (UPI), Agence France Press (AFP) e Reuters — sediadas, sem exceção, em nações desenvolvidas. Dito de outro modo, isso significa que mesmo as informações sobre acontecimentos em uma nação vizinha como a Venezuela tendem a chegar ao Brasil a partir de materiais produzidos pelas grandes agências internacionais.
Como a grande mídia brasileira praticamente reproduz as notícias distribuídas pelas agências internacionais sem fazer a devida análise crítica, não é difícil constatar que, no tocante aos noticiários geopolíticos, teremos visões favoráveis às políticas externas das principais potências globais e, em contrapartida, representações negativas a respeito de nações como a Venezuela, Irã, Síria e Rússia, consideradas hostis pelo status quo ocidental.
Não obstante, para facilitar a compreensão do público (em geral não familiarizado com as temáticas geopolíticas) e tornar inteligível a complexa configuração das relações internacionais, a mídia fornece “atalhos cognitivos”, a partir de estereótipos, tipificações, maniqueísmos, chavões, personalizações, lugares-comuns, generalizações, “opiniões prontas” e concepções de mundo já formadas.
Desse modo, a Venezuela nos é apresentada como uma nação governada por um ditador sanguinário, em constante estado de caos, com toda a população faminta e onde não há eleições minimamente livres ou respeito aos direitos humanos básicos. Diante dessa realidade, a única solução para o drama venezuelano seria a tomada do poder pela oposição, nem que para isso precise passar por cima da constituição e das instituições. No maniqueísmo das narrativas midiáticas, enquanto o chavismo representaria o mal, os políticos da oposição seriam o “novo”, a “democracia” e a “modernidade”. Figuras claramente golpistas e antipopulares como Henrique Capriles e Juan Guaidó (que se declarou presidente da Venezuela no lugar de Maduro) são exaltadas pela grande mídia brasileira como paladinos do povo venezuelano.
Evidentemente, não há como negar que a nação bolivariana está atravessando uma grave crise política e econômica. Contra fatos não há argumentos. Todavia, seria puro cinismo creditar todas as mazelas venezuelana exclusivamente às más gestões dos mandatos chavistas, sem levar em consideração as inúmeras tentativas de sabotar o governo feitas pela oposição, a atuação golpista da grande imprensa local e a interferência imperialista, sobretudo da grande potência mundial: os Estados Unidos da América. Diga-se de passagem, tais questões são absolutamente escamoteadas pela grande mídia brasileira.
Lembrando as palavras de Tarso Genro, “a mídia esgota um determinado acontecimento em sua imediatidade, não levando em conta suas conexões e historicidade”. Sendo assim, a atual crise venezuelana é tratada pela imprensa brasileira sem citar seus condicionantes espaciais e temporais, ou seja, como algo que “surgiu do nada”.
Desde que Hugo Chávez assumiu, no final da década de 1990, há uma intensa campanha estadunidense (com apoio de setores da elite e da imprensa local) para desestabilizar o chavismo, com destaque para a tentativa de golpe de Estado ocorrida em 2002 (sobre este acontecimento, que praticamente não é mencionado na grande mídia brasileira, sugiro o documentário irlandês “A Revolução Não Será Televisionada”). O ódio que os Estados Unidos, imprensa e elite venezuelana sentem em relação ao chavismo não está relacionado a um possível autoritarismo de Chávez ou Maduro. Tratam-se de questões muito mais pragmáticas.
Sob o ponto de vista geopolítico, o chavismo foi um dos movimentos políticos latino-americanos responsáveis por catapultar a grande guinada à esquerda em nosso subcontinente ocorrida nas últimas décadas. Nesse sentido, países como a Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador e Brasil promoveram determinadas mudanças políticas, econômicas e sociais que não foram bem recebidas tanto pela grande potência mundial quanto pelos setores mais conservadores das sociedades latino-americanas.
Embora em escalas diferentes, os governos de esquerda da América Latina romperam com alguns paradigmas neoliberais, fomentaram uma maior participação estatal em setores estratégicos da economia, colocaram em prática medidas que visavam a minimizar a histórica concentração dos meios de comunicação de massa no subcontinente e incrementaram políticas sociais (o que desagradou profundamente às classes médias e altas “acostumadas” com a população pobre desamparada frente ao poder público).
Durante o mandato de Hugo Chávez houve grande incentivo para a criação de rádios comunitárias e de outros veículos da chamada imprensa alternativa. Não obstante, o presidente venezuelano também bateu de frente com a grande mídia do país, chegando a não renovar a concessão da RCTV (que participou da tentativa de golpe citada anteriormente) em 2007, alegando que a emissora, ao privilegiar negócios privados em detrimento de prestar informações de interesse público, não cumpria as funções destinadas aos canais de televisão, conforme o previsto na constituição venezuelana.
Após a primeira eleição de Maduro, em 2013, o candidato derrotado, Capriles, e a oposição venezuelana de maneira geral não aceitaram a decisão das urnas (qualquer semelhança com um candidato derrotado no Brasil em 2014 não é mera coincidência). Desde então, os grandes empresários venezuelanos iniciaram a chamada “guerra econômica”, colocando em prática boicotes à produção e distribuição de produtos básicos, especialmente alimentos e medicamentos. Isso explica, em parte, o aumento de famintos na Venezuela e a astronômica inflação (causada pelo desequilíbrio entre demanda e oferta).
Soma-se a isso também o implacável cerco dos Estados Unidos, responsável por impor um bloqueio econômico e financeiro à Venezuela, promover grupos de extrema-direita que realizam ataques em todo o país e financiar políticos, membros de partidos e ONGs de oposição ao chavismo. Essas questões, evidentemente, não aparecerão nos jornais de circulação nacional e tampouco nas principais redes de televisão brasileiras.
Para finalizar este artigo deixo uma pergunta em aberto: se a Venezuela é realmente uma ditadura completa, conforme diz a mídia brasileira, porque a Assembleia Nacional é controlada pela oposição e cerca de 80% dos meios de comunicação são contrários ao governo Maduro? Geopolítica é um assunto mais complexo do que os poucos minutos dos noticiários internacionais ou do que as postagens “engajadas” nas redes sociais. Bashar al-Assad, Nicolás Maduro e Hassan Rouhani, entre outros governantes, são representados negativamente na mídia não pelos seus equívocos políticos, mas por não cederem os recursos naturais e humanos de suas nações para que as grandes potências capitalistas se recuperarem dos prejuízos causados pela crise econômica de 2008. Nessa “guerra híbrida”, ter um eficiente aparato midiático é tão importante quanto possuir um poderoso exército.
O que está em jogo na Venezuela não é somente a dicotomia democracia versus ditadura, mas a própria soberania de uma nação subdesenvolvida que está na mira de uma grande onda planetária de golpes de Estado capitaneada pela maior potência global. Manuel Zelaya, Fernando Lugo e Dilma Rousseff não caíram de “maduro”. Em suma, a Venezuela é muito além do que a mídia mostra.
*Fonte: Francisco Fernandes Ladeira é professor do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.