“Fui ver o show de Caetano Veloso em São Paulo. Magnífico. Extasiante. Sublime. O Mestre apresentou algumas de suas últimas primorosas obras, entremeadas por clássicos mais “antigos”.
Na letra de uma das canções que Caetano apresentou (“Funk Melódico”) há um verso contundente: “O ciúme é o estrume do amor”. Essa metáfora se relaciona com outra, também alusiva ao ciúme (de uma letra de Vinicius de Morais): “O ciúme é o perfume do amor”. As imagens, fortes, fortíssimas, são contraditórias, embora verdadeiras (ou não?).
Essas duas metáforas me trouxeram à mente uma canção inteira dedicada ao tema, também de Caetano Veloso. Trata-se de “O Ciúme”, de 1987. Pungentes, melodia, versos e interpretação nos fazem sentir na carne (como diz a própria letra) a força do ciúme como flecha bem no meio da garganta.
Não vou reproduzir aqui a letra inteira. Basta ao leitor entrar no site do próprio Caetano para encontrá-la (e, também, ouvir a inesquecível interpretação). Vou ater-me a algumas passagens do texto, que exigem do leitor/ouvinte alguns conhecimentos para a plena compreensão: “Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia/ Tudo esbarra embriagado de seu lume/ Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/ Só vigia um ponto negro: o meu ciúme/ (…) Velho Chico, vens de Minas/ De onde o oculto do mistério se escondeu/ Sei que o levas todo em ti, não me ensinas/ E eu sou só, eu só, eu só, eu/ Juazeiro, nem te lembras dessa tarde/ Petrolina, nem chegaste a perceber/ (…) Sobre toda estrada, sobre toda sala/ Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”.
O caro leitor talvez saiba, mas não custa lembrar que Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) são separadas pelo Chico, ou seja, pelo rio São Francisco. Unidas por uma ponte, são, como todas as cidades que vivem situação análoga, rivais (aliás, “rival” vem de “rivus”, do latim; significa “regato, ribeiro, corrente de água”). Que me diz agora o caro leitor da imagem da relação entre Petrolina e Juazeiro como pano de fundo para o ciúme?
Caetano se vale de outro detalhe “geográfico”: o rio São Francisco nasce em Minas Gerais (“Velho Chico, vens de Minas…”), e, como bem diz o grande poeta, “…vens de Minas, de onde o oculto do mistério se escondeu…”. Outra imagem antológica, que adensa ainda mais os caminhos tortuosos, ocultos, indecifráveis do ciúme. Existe algo mais misteriosamente oculto ou ocultamente misterioso do que Minas Gerais, suas montanhas e sua gente?
Os versos finais da letra são lapidares: “Sobre toda estrada, sobre toda sala/ Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. Profundo conhecedor dos meandros do idioma, Caetano não empregou a ordem direta no último verso, que certamente empobreceria e enfraqueceria a mensagem.
Para quem não entendeu, explico: na ordem direta, o verso final seria “A sombra do ciúme paira monstruosa”. Será que ainda preciso explicar os belíssimos efeitos da inversão da ordem “natural” dos termos?
Ler uma letra de música, um conto, um poema –uma obra literária, enfim– exige abertura d’alma, conhecimento, cultura, sensibilidade, noções de intertextualidade.
Cantar “O Ciúme” à beira do velho Chico. Que momento mágico será esse! Que inveja...